A visão de dentro da favela
Algumas citações do livro Quarto de Despejo que mexeram comigo
Tempo estimado de leitura: 5 minutos.
Olá, internauta que me lê, a vida está sendo justa e gentil contigo?
Terça-feira concluí uma leitura difícil de digerir: Quarto de Despejo — Diário de uma Favelada (1960), escrito pela mineira Carolina Maria de Jesus. Conheço a obra há anos, porém os comentários que li por aí deixavam claro que a leitura é um soco no estômago por causa do seu conteúdo. Dessa forma, fui deixando o livro de canto, porque não me sentia preparada para encará-lo. A coragem veio devido ao clube de leitura no qual faço parte, pois a obra foi escolhida para ser discutida no final do mês.
Sinopse retirada da apresentação do livro:
O cotidiano da favela já foi contado por diversos autores, de diferentes maneiras. Neste livro, a perspectiva é outra: é a de quem vive na favela, mais especificamente a de uma catadora de papel que só pôde chegar até o segundo ano do ensino fundamental.
Quarto de despejo é uma edição dos diários de Carolina Maria de Jesus, migrante de Sacramento, Minas Gerais, mãe solteira e moradora da primeira grande favela de São Paulo, a Canindé, que foi desocupada em meados dos anos 1960 para a construção da Marginal do Tietê.
O jornalista Audálio Dantas ficou encarregado de escrever uma matéria a respeito de uma favela que se expandia perto do rio Tietê, em São Paulo.
Lá, no rebuliço favelado, encontrei a negra Carolina, que logo se colocou como alguém que tinha o que dizer. E tinha! Tanto que, na hora, desisti de escrever a reportagem. A história da favela que eu buscava estava escrita em uns vinte cadernos encardidos que Carolina guardava em seu barraco. Li, e logo vi: repórter nenhum, escritor nenhum poderia escrever melhor aquela história - a visão de dentro da favela.
Algumas citações do livro para te fazer lê-lo ou pelo menos pensar a respeito dos temas abordados
Em cada fragmento lido de seu diário me batia uma vontade de sair na rua e gritar “LEIAM QUARTO DE DESPEJO IMEDIATAMENTE!”. Ainda me é custoso comentar sobre o impacto causado por essa leitura. Fiquei com raiva dos políticos; dei risadinhas em situações dignas de crônicas; as violências apresentadas me deixaram angustiada, aperreada e com lágrimas nos olhos por ser apenas uma leitora, logo não poderia fazer nada. Igual a ela. Fiquei com vontade de entrar na história e falar para a Carolina que tudo ficaria bem, para ela se manter forte e continuar escrevendo. Mas sei que isso não mataria a sua fome e nem a de seus filhos, muito menos seria o conforto de uma casa com tijolos.
Deixarei abaixo algumas citações que bateram na querida que te escreve, porque só assim para você sentir um pouco do que senti ao longo do livro:
20 de julho de 1955:
O meu sonho era andar bem limpinha, usar roupas de alto preço, residir numa casa confortável, mas não é possível. Eu não estou descontente com a profissão que exerço. Já habituei-me andar suja. Já faz oito anos que cato papel. O desgosto que tenho é residir em favela.
21 de julho de 1955:
Quando cheguei em casa era 22,30. Liguei o radio. Tomei banho. Esquentei comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem.
22 de julho de 1955:
Eu sou muito alegre. Todas manhãs eu canto. Sou como as aves, que cantam apenas ao amanhecer. De manhã eu estou sempre alegre. A primeira coisa que faço é abrir a janela e contemplar o espaço.
6 de maio de 1955:
...O que eu aviso aos pretendentes a politica, é que o povo não tolera a fome. E preciso conhecer a fome para saber descrevê-la.
10 de maio de 1955:
...O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no proximo, e nas crianças.
19 de maio de 1958:
Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo.
8 de novembro de 1958:
Político quando candidato
Promete que dá aumento
E o povo vê que de fato
Aumenta o seu sofrimento!
27 de novembro de 1958:
Como é horrivel ouvir um pobre lamentando-se. A voz do pobre não tem poesia.
28 de maio de 1959:
...A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.

Ao terminar o livro, o seguinte pensamento veio a minha mente: “seria a escrita a forma mais livre do ser humano se expressar?”. Afinal, só é necessário papel, caneta e a vontade de desabafar, sem a pressão de elaborar citações impactantes e metafóricas, ignorando os erros ortográficos. Na escrita, a nudez do sujeito não é vista com vergonha ou repúdio, mas sim como um corpo que sente todas as coisas do mundo, com o desejo de se mostrar tal como ele é e de ser visto.
Com a liberdade concedida pela escrita de um diário, Carolina tornou visível aos olhos do leitor de fora da realidade do livro o cotidiano de uma favela. Só pelos trechos escolhidos por mim para essa newsletter, percebe-se a honestidade da autora em dizer o que ela sente e pensa sobre o ambiente no qual ela reside e seu desejo de sair de lá; além de sua decepção e revolta com os políticos por terem o poder de mudar a realidade das pessoas da favela, mas preferem ignorar, ou até mesmo piorar a situação do povo de lá. Sobretudo, Carolina mostra a luta diária de alguém que trabalha para manter o básico para a sobrevivência de qualquer ser humano: a alimentação. A fome, portanto, é a protagonista dos relatos da autora.
A newsletter de hoje foi bem basiquinha — é preciso reconhecer que nem sempre conseguiremos nos expressar a respeito de algo, e daí a importância de recorrer a quem sabe, da mesma forma que o jornalista Audálio. Espero que as citações acima tenham te despertado a curiosidade de ler Quarto de Despejo, caro leitor. É um livro difícil de digerir, mas vale o esforço!
Com carinho,
Erika Larissa.
05 de fevereiro de 2025.
Esse livro é fantástico! Nunca pode parar de ser discutido